Menina que anda solta pela rua
Vestido de menina, sorriso de menina
Uma leveza também de menina
E dizes tantas coisas e são palavras tão frágeis
Como os de uma menina
Inevitável não te reconhecer mulher, claro
Mas é que não falo disso
De suas belas e macias curvas
De seus traços delicados
Falo da que me fala de si mesma
E por mais assustador que seja
Transcende ainda mais sobre isso tua beleza
Uma contradição frágil
Quem nunca ouviu esse conto antes?
A menina perdida e o herói feito da oportunidade
Da oportunidade de acolher
Ela, frágil, ele, querendo proteger
E enquanto falavas, nem de certo sei
Se eram nas palavras que estava afim
E desde já me perdoe
Por minhas seguidas contradições
É que observava as palavras escritas em ti
Na expressão do teu corpo
Dos teus membros
Em cada curva dos teus olhos
Em cada gesto de teus lábios
Um jeito de cruzar as pernas
E outro jeito de descruzá-las
Todos os traços entre um silêncio calmo
E outro cheio de ansiedade
Todos os pedidos contidos e incontidos
Uns quase que não ditos
Outros gritados dos telhados
Toda a tua pele tem um tom elevado
Elevado para quem se atreve descrevê-lo
Mas eis o fantástico do corpo
Que permite pelo tato dizê-lo
E não pense que teus calafrios e calores nada me disseram
O aquecer e o esfriar de tua pele mostraram-me tua verdadeira linguagem
Ela me diz quando acreditar ou não em ti
Na menina que carrega o mais belo signo em si
O de ser menina, um jeito menina de ser assim
E há de se conhecer também o teu demônio
Esse teu jeito de menina
Que faz crer que tens a chave que abre todas as portas
A da alegria: leveza e brilho dos tempos de criança
É assim que encantas quando passas pelas ruas bailando em sorrisos
É assim que atrai os olhares vorazes e vampirescos
Que desejam esse teu vigor
Também és desejo daqueles que sonham e poetizam
Resumes em ti mesma o instante da filosofia
Um momento de eternidade no temporal
Contudo, te tornas num instante contínuo
Transcendes a esse instante finito
E é quase necessário cantar um hino
À beleza de tua teofania
Mas diga-me com toda sinceridade, menina!
Que não és isso e nem aquilo
Perdoe-me por me contradizer novamente
É que vi não teu corpo despido
Mas a tua alma nua e ardente
Num jeitinho meigo e impetuoso
Despistes a ti mesma perante mim
E quanta angústia em cada peça de roupa tirada
E também quanta alegria
Até chegar em tuas partes mais íntimas
E então me chamas para a cama contigo
Não é só o teu rosto, os teus ombros
Tuas pernas e tuas mãos que queres que toque
Queres mesmo que sinta toda a tua carne
Todo o teu suor... o teu gemido
Queres tornar conhecida toda a tua dor
E também toda a tua alegre energia
Toda a vontade de se livrar disso
Contudo, ainda mais forte uma vontade de tomar toda a vida em si
E tua intensidade eroticamente delicada
Quente e carinhosa
Uma vontade de ser assim
Por vários motivos que me dissestes
Ardente, intensa, destilando carícias
Como quem sabe tudo o que se deve fazer
E fazes como quem nem precisou saber
Liberdade parece-me o nome do teu querer
Mas há que se dizer também de tua fera
Confesso, uma fera que ainda não sei dizer
Há uma que sai pelos campos e deixa sua presa estraçalhada
Após ter saciado a sua fome
Há outra fera em ti que quer encontrar-se com sua presa
Quer convidá-la para um café quente num dia frio
Dizer que as coisas não são bem assim
E não há nisso mesmo certo instinto animal?
E há que louvar a tua braveza
De ter saído para a caça e ter voltado com sangue nos dentes
E o ventre saciado
Há de se louvar a tua beleza
Que de outra forma sai para a caça
Assenta-se na praça, convida a alma
Para puxar uma cadeira
Há de se falar em tal heroísmo
Aquele sentimento vívido de existir
E dizer para si mesma: “eu”; ouvindo também de outros muitos: “ela”
Como a cena do guerreiro que volta para sua cidade com o grito de vitória
Que seja louvada também a tua outra parte
Que nem sai, nem caça, nem guerreia
Essa que com os pés sobre a areia
E e os calcanhares molhados pelo mar
Caminha mais bela que uma sereia
Por ter belos pés para caminhar
E que seja também feita a grande pergunta
Será que um dia poderás ter alguém próximo ao peito?
Alguém que recostado em teu seio possa te contar
Dos segredos mais ou menos suspeitos
Do tédio e das aventuras da vida
E eis ainda aqui um erro
Um erro meu, confesso
De ter visto-a em parte
E muito depois reconhecer a tua arte
Que como fera sais à procura de verdadeira amizade
Recolhes as tuas garras, desfaz-se de tuas amarras
E viras as costas para que te possa aquecer
E recostar em ti
Eis aqui a tua presa
Nem inocente, nem tanto indefesa
Mas que não vê em ti nenhum perigo
E há que se falar do prazer de assentar-se contigo
Comer juntos, andar juntos
Num tênue fio de estreiteza
Onde uma alma num absurdo da existência
Comunica-se e se faz conhecer à outra
E se entendem e falam uma mesma linguagem
Há que se louvar ainda o milagre
Que nem sendo aquele da multiplicação dos pães e dos peixes
Nem o acalmar das águas do mar
Mas aquele que sacia a alma... e a faz acalmar
Menina que anda solta pelas ruas
Leve, sorridente, bela, atraente...
Menina! Menina! Menina!
Mas por favor, perdoe-me a tolice
É que depois que te despistes
Tornastes totalmente bela para mim
Senti toda a tua pele
Senti teu abismo
Tua liberdade, teu pudor
Teus cabelos, teu calor
Tua voz que já não dizia palavras
Mas suspirava tão perto
Que era capaz de sentir teus lábios
Da forma mais intensa
Era o máximo que podíamos experimentar
Numa linguagem entre mim e ti
A fera e sua presa